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João Leonardo reúne centenas de maços de tabaco, milhares de beatas e cinza, entre outros elementos, na sua mais recente exposição individual - "One Hundred and Six Columns, Four Heads and One Table". © João Leonardo (foto de: Alexandre Romero).Estatística em primeiro lugar, seguida de um pouco de história. Cerca de 19% da população mundial é hoje fumadora. Estes números fazem simples um olhar pela história do tabagismo, que teve o seu longínquo início entre o quinto e o terceiro milénios antes de Cristo, para constatar como este resistiu aos séculos e evoluiu para ser um dos maiores vícios da humanidade. Começando num contexto religioso, o consumo do tabaco rapidamente se transformou naquilo que hoje conhecemos, o "ouro castanho". Por acidente, ou simplesmente como forma de explorar o produto, surgiu o queimar e inalar da planta; e é curioso, então, pensar que essa exploração se ficou essencialmente por aí. Mas não para João Leonardo, nascido em Odemira em 1974, Licenciado em História da Arte pela Universidade Nova de Lisboa em 1996 e Mestre em Belas Artes pela Malmö Art Academy da Universidade de Lund, na Suécia, em 2009.Fumador, os seus hábitos tabagistas são ligeiramente diferentes daqueles do fumador comum... Ao acabar de um cigarro, apaga-o cuidadosamente para depois o guardar, ou o que dele restar. O mesmo se passa com o maço ao sacar o último cigarro, e também com a cinza produzida. E não são só os restos do seu vício que guarda religiosamente, mas todos aqueles que encontra. Este é um conjunto de gestos ritualizados que faz parte do seu processo criativo, e através do qual consegue a matéria-prima para o seu trabalho, ao mesmo tempo que contribui para eliminar estes resíduos tão presentes nas ruas, resultando a sua reciclagem em obras de arte. Há, assim, duas facetas instantâneas naquilo que faz: a performance contínua, o processo; e a instalação, o produto.O seu primeiro contacto profissional com o tabaco produziu "Calendar #1", uma instalação apresentada em 2006, composta de 3600 maços de tabaco emoldurados, coleccionados desde que começara a fumar aos 16 anos. Em 2007, um ano depois desse contacto que viria a redefinir e direccionar a sua arte, e dois anos passados sobre a conquista do Prémio EDP - Novos Artistas, que lhe deu visibilidade e reconhecimento, muda-se para Suécia, onde trabalha actualmente, e vence também o prémio alemão Danfoss Art Award.Tempo, corpo, dependência... É esta a linha condutora que nos traz "One Hundred and Six Columns, Four Heads and One Table", a sua nova exposição individual. Esta resulta do trabalho desenvolvido entre Abril de 2010 e Maio de 2011, durante a residência artística na Internationales Künstlerhaus Villa Concordia, em Bamberg, na Alemanha, apoiada pelo Estado da Baviera, e que representa para o artista um momento marcante na sua jovem carreira, o momento em que crê ter desenvolvido uma linguagem visual própria.A exposição, que chegou a Lisboa no ano passado, é maioritariamente composta a partir dessa baixa categoria de lixo, as beatas. Durante cerca de um ano, pacientemente, o artista recolheu das ruas de Bamberg o que para outros não passa disso mesmo, lixo, e depois de um processo de cuidadoso inventário, de uma separação por categorias e de destilação do tabaco, obteve os elementos com os quais criou múltiplos objectos.© João Leonardo (foto de: Alexandre Romero).© João Leonardo (foto de: Alexandre Romero).© João Leonardo (foto de: Alexandre Romero).Na História da Arte Contemporânea não faltam artistas que recorreram ou recorrem a materiais perecíveis, degradáveis e orgânicos. De entre eles, a referência para João Leonardo é o alemão Diether Roth (1930-1998). "Em 2008 tive a oportunidade de ver o atelier dele, e fiquei fascinado com a forma como envolvia a vida no seu trabalho, com o grau de auto-representação. Ele destruía de forma sistemática as fronteiras entre a arte e a vida, e o desvanecimento dos materiais foi uma parte essencial do seu trabalho. Trabalhou com chocolate, açúcar, comida, que espalhava nas telas e nos objectos. Mas nunca ficou preso a um estilo, reinventou-se sempre", diz.Como Roth, para o artista português o atelier é lugar de experimentação, e foi a partir daí que descobriu e firmou as bases para as suas obras. As beatas são uma escolha que tem tanto de óbvio como de bizarro, e foi a partir delas que o tabaco como material e tudo o que o rodeia se tornou o centro daquilo que faz. "Eu fumo. Fazem parte do meu quotidiano, ando sempre a apagá-las nos cinzeiros. Dentro do estúdio tenho a tendência para observar o mundo à minha volta, ver quais são os objectos que me rodeiam, o que posso fazer com eles. Comecei a imaginar o que podia fazer com as beatas. São o maior desperdício dos fumadores e, ao contrário do que se pensa, pouco biodegradáveis. E comecei a pegar nelas, a sujeitá-las a vários processos de manipulação até chegar a diferentes resultados.", explica.© João Leonardo (foto de: Alexandre Romero).© João Leonardo (foto de: Alexandre Romero).Em "One Hundred and Six Columns, Four Heads and One Table", uma das mostras mais fortes é exactamente a desse meio criativo que é o atelier. É feita através da instalação da mesa usada pelo artista, qual laboratório, cheia de pincéis, nicotina líquida, papéis de cigarro, beatas, cinza, etc., e que permite ao espectador contactar directamente com o processo de produção pela exposição da matéria-prima nas diversas formas usadas. "Todo o tabaco foi apanhado do chão...", à excepção do seu próprio, e é aí mesmo, no chão, que a mesa é colocada, "Podia ter comprado numa loja e destruir uns volumes, mas quis mostrar a recolha, a colecção. A ideia é levar ao limite este processo de selecção e separação. E pegar num material desprezível, tratá-lo com muito cuidado, como se fosse extremamente precioso".O resultado do complexo processo criativo que João Leonardo faz questão de expor é uma mostra também ela complexa e contraditória, um misto de questionamento social do acto de fumar e da relação, e dos seus resíduos, entre o indivíduo, fumador, e o próprio tabaco. É uma relação que pode dizer-se íntima, suja, efémera, dependente, sempre estereotipada, mas, ao contrário do que seria de esperar, o entrar na exposição não afasta os estereótipos: confronta-nos com eles e obriga a pensá-los. O cheiro é o primeiro a ser reconhecido e a causar repulsa, mas logo de seguida a estética das obras rapidamente nos torna a prender, até porque não é delas que emana o aroma, mas sim da mesa do artista, colocada no fim da exposição. Há uma intenção clara de opor o prazer e a auto-destruição, a opressão e o caos, à razão e à lógica, à ordem. Algo com uma carga simbólica muito particular, negativa - um resíduo - é levado a um refinamento estético. O espectador é obrigado a parar, observar e interpretar.© João Leonardo (foto de: Alexandre Romero).Das beatas nasce uma multiplicidade de peças. As mais chamativas serão os bustos, criados a partir de um molde da cabeça do artista, e depois os quadros. Alguns monocromáticos ou abstractos, um auto-retrato, perfis humanos, uma caveira, apoiados nas diferentes cores que uma beata apresenta, e sempre numa dualidade entre a vida e a morte, entremeada naturalmente pelo vício. Um outro quadro, uma enorme tela, viu escrita à mão inúmeras vezes a frase "breathe in, breathe out", sendo o acabamento feito com nicotina líquida. Sobre ela diz o artista: "Vejo-a como representação muito abstracta da vida. Nascemos a inspirar o ar e quando morremos, expiramo-lo. A nicotina é algo que introduzimos nesse movimento, uma droga, uma interferência.".© João Leonardo (foto de: Alexandre Romero).Com o papel que envolve os cigarros cria outras duas peças, onde centenas figuram meticulosamente alinhados, e numa outra, da série Calendar, um calendário em duas partes tem os dias substituídos e/ou representados por mais de 700 maços de cigarros. Por último, duas peças colocadas lado a lado, ambas com a mesma altura e largura que o corpo do artista, encerra em acrílico um volume surpreendente de cinza, uma, e de tabaco desfeito, a outra. São paisagens onde tudo o resto, esta realidade outra de João Leonardo, se poderia desenrolar.© João Leonardo (foto de: Alexandre Romero).Um ciclo inteiro parece completar-se no trabalho do artista plástico, onde há a sugestão de algo metafórico, mas também de autobiográfico. Há três formas de olhar para esta exposição e para o seu trabalho em geral. Uma delas é optar pela questão formal, onde as obras são claramente herdeiras do modernismo e das vanguardas, buscando a liberdade, o sentido da vida e um lugar na sociedade, ainda que pela renúncia dos anteriores. Outra prende-se com o processo de criação, com o próprio artista. E uma última obtém-se das ideias surgidas em quem observa. No artista e no observador marca-se a fugacidade da vida, do prazer e do vício (e, por estes, a identificação), da certeza da morte e do domínio inquestionável do tempo, daquilo que caracteriza o indivíduo, dos hábitos que o tornam naquilo que é, de tudo quanto o compõe. Tudo isto na consciência, sem abdicações.A ligação estabelecida entre o tempo, o corpo e o próprio resíduo de tabaco apresenta o vício de uma outra perspectiva. Depois, vemos quadros e esculturas e só por fim se vê tabaco, muito tabaco e, naturalmente, muito dinheiro investido.© João Leonardo (foto de: Alexandre Romero).A transformação - pois é esse o objectivo de João Leonardo - de algo desprezível, desprezado e sujo, em algo intemporal, passível de ser admirado, interpretado e apreciado, traz-nos a elevação do vício ao propósito último do mesmo: a manutenção da sensação. Através do seu trabalho é isto que consegue. O lixo deixa de ser lixo, inerte na capacidade de induzir o que quer que seja, para se tornar de novo, sempre, e de forma contínua, uma fonte de prazer.João afirma não ter ainda esgotado as possibilidades deste material, e diz ter mais para expor, mais para contar. Para acompanhar o artista, ou saber um pouco mais, visite o seu site pessoal.Leia mais: http://obviousmag.org/archives/2012/02/joao_leonardo_o_outro_lado_do_vicio.html#ixzz1nhroJu6K
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