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sexta-feira, 30 de julho de 2010

A NOVA POESIA PORTUGUESA SOCIOLOGICAMENTE CONSIDERADA



I
Ao movimento literário representativo e peculiar da nascente geração portuguesa tem sido feito pela opinião pública o favor de o não compreender. E esse movimento que, sobretudo na poesia, com crescente nitidez acusa a sua individualidade representativa, não tem sido compreendido, porque uma parte do público, a que tem mais de trinta anos, está inadaptalizável, por já velha, a esse movimento, e consta, perante ele, de incompreendedores natos; porque outra parte, ou por circunstâncias de bacharelosa espécie educativa, ou por descuidada na manutenção espiritual do sentimento de raça, ou ainda por sentimentos de desviado e estéril entusiasmo, gerados por absorção na intensa e mesquinha vida política nossa, está colocada num estado de pseudo-alma descritível como sendo de incompreendedores de ocasião; e porque a outra, restante, aquela de quem são os novos poetas e literatos e os que os acompanham no obscuro sentimento racial que os guia, não tomou ainda consciência de si como o que realmente é, porquanto o movimento poético actual é ainda embrião quanto a tendências, nebulosa quanto a ideias que de si ou de outras coisas tenha.
Urge que — pondo de parte misticismos de pensamentos e de expressão, úteis apenas para despertar pelo ridículo, que a sua obscuridade para os profanos causa, o interesse alegre do inimigo social — com raciocínios e cingentes análises se penetre na compreensão do actual movimento poético português, se pergunte à alma nacional, nele espelhada, o que pretende e a que tende, e se ponha em termos de compreensibilidade lógica o valor e a significação, perante a sociologia, desse movimento literário e artístico.
II
Em primeiro lugar, é evidente que aquilo a que se chama uma corrente literária deve de algum modo ser representativo do estado social da época e do país em que aparece. Porque uma corrente literária não é senão o tom especial que de comum têm os escritores de determinado período, e que representa, postas de parte as inevitáveis peculiaridades individuais, um conceito geral do mundo e da vida, e um modo de exprimir esse conceito, que, por ser comum a esses escritores, deve forçosamente ter raiz no que de comum eles têm, e isso é a época e o país em que vivem ou em que se integram.
E se a literatura é fatalmente a expressão do estado social de um período político, a fortiori o deve ser, adentro da literatura, o género literário que mais de perto cinge e mais transparentemente cobre o sentimento e a ideia expressos — e esse género literário é a poesia.
Não é isto, porém, que de momento importa. Saber pela 1iteratura as ideias de uma época só pode ter interesse para a posteridade, que não tem outro meio de a tornar presente ao seu raciocínio. O que nos ocupa é saber se a literatura nos poderá ser um indicador sociológico, se nos pode ser ponteiro para indicar a que horas da civilização estamos, ou, para falar com clareza, para nos informar do estado de vitalidade e exuberância de vida em que se encontra uma nação ou época, para que, pela literatura simplesmente, possamos prever ou concluir o que espera o país em que essa literatura é actual. E é precisamente isto que a priori se não pode imaginar. Reportemo-nos, pois, à evidência analisada dos factos.
Desbravemos, porém, o terreno, aclarando alguns termos essenciais e simplificando, para não sermos longos, as condições da análise projectada.
Por vitalidade de uma nação não se pode entender nem a sua força militar, nem a sua prosperidade comercial, coisas secundárias e por assim dizer físicas nas nações; tem de se entender a sua exuberância de alma, isto é, a sua capacidade de criar, não já simples ciência, o que é restrito e mecânico, mas novos moldes, novas ideias gerais, para o movimento civilizacional a que pertence. É por isso que ninguém compara a grandeza ruinosa de Roma à super-grandeza da Grécia. A Grécia criou uma civilização, que Roma simplesmente espalhou, distribuiu. Temos ruínas romanas e ideias gregas. Roma é, salvo o que sobremorre nas fórmulas invitais dos códigos, uma memória de uma glória; a Grécia sobrevive-se nos nossos ideais e nos nossos sentimentos.
Servir-nos-ão de material para a análise duas nações apenas -a Inglaterra e a França; e isto porque, tendo essas uma unidade nacional, uma continuidade de vida e uma influência civilizacional acentuada, o problema se limita sirnplesmente à análise que desejamos fazer, sem impor, como imporia o estudo de qualquer nação ou mais complexa, ou mais afastada no tempo, uma prévia análise diferencial. A escassez do material, porém, importa apenas quando é superficial a análise; porque, se pour expliquer un brin de paille il faut démonter tout le système de l'univers, ao raciocinador ideal bastaria, visto que o sistema do universo se acha logicamente contido no brin de paille, analisá-lo bem, a ele brin de paille, para deduzir o sistema do universo.
Tomaremos a Inglaterra e a França para material de análise. E tomaremos períodos nítidos, pois que o espaço não permite a co-análise de períodos literária ou politicamente embrionários.
III
A história literária da Inglaterra mostra três períodos distintos, ainda que subdivisíveis em subperíodos — o isabeliano, que vai de 1580, aproximadamente, até a um ponto pouco mais ou menos coincidente com o fim da República; o tratável de « neo-clássico» que, pouco depois começando, ocupa quase todo o século XVIII, começando porém a morrer desde 1780, aproximadamente; e o moderno, que vem desde então até aos nossos dias. Destes três períodos o primeiro impõe-se como, por muito, o maior, não só por ser mais alto o tom poético geral do período, mas também porque as suas culminâncias poéticas — Spencer, Shakespeare e Milton — põem na sombra quantos nomes ilustres os outros dois períodos apresentem. — O segundo período é inferior aos outros dois: o tom poético é aquele, intolerável, que a França do ancien régime derramou pela Europa de que tinha a hegemonia social. — O terceiro período contém figuras que, sem serem supremas, são como Coleridge, Shelley ou Browning, grandes indiscutivelmente.
Vejamos agora a que períodos políticos estas épocas literárias correspondem. A época isabeliana corresponde ao período da vida inglesa cuja realização foi feita pela República e na pessoa, preeminentemente, de Cromwell. Foi um período criador; nele deu a Inglaterra ao mundo moderno um dos grandes princípios civilizacionais que lhe são peculiares — o de governo popular, princípio que depois a Revolução Francesa, parcarnente criadora, simplesmente transformou no de democracia republicana. — O segundo período da vida política inglesa, o que vem desde a queda da República, culmina na revolução, de mera substituição dinástica, de 1688, e vem morrer por 1780 nas almas, e de facto com a reforma eleitoral de 1832, é absolutamente nulo e estéril para a Inglaterra; nele, ela nada criou, nem mesmo a sua própria grandeza, visto que a hegemonia social na Europa era então da França. Neste segundo período a Inglaterra não fez senão ir realizando, apática e frouxamente, o princípio de governo popular que havia criado. — Também no terceiro período a Inglaterra nada criou de civilizacional; criou a sua própria grandeza e nada mais — visto que a hegemonia europeia tem sido mais sua do que de outra nação no século XIX, conforme o vincaram para a história Nelson, em Trafalgar, e Wellington, em Waterloo.
Virando-nos agora para a França, e desprezando, como já dissemos, o embrionário e informe, vemos igualmente três períodos, incoincidentes, porém, no tempo, com os três períodos ingleses. O primeiro período acompanha o ancien régime, culmina no tempo de Luís XIV e dura até ao fim do século xvm, emprestando o tom à literatura europeia. O segundo período, o romântico, começa depois da queda do ancien régime e vai terminando à medida que o republicanismo se vai realizando nas almas, de 1848 a 1870, aproximada mas incorrectamente. De então para cá, em seguida ao período (de 1871 a 1881 pouco mais ou menos) de lenta consolidação republicana, vem o terceiro período, aquele a que caracterizam o realismo, o simbolismo e outros anti-romantismos.
Vejamos agora como se nos mostram os correspondentes períodos políticos. O primeiro, ancien régime, foi um período em que a França nada criou para a civilização, visto que criou apenas a sua própria grandeza e a correspondente hegemonia social europeia, cujo reflexo longínquo e fraquejante é a influência de que ainda goza. O segundo período é aquele que, precipitando-se na prematura Revolução Francesa, se vai realizando só depois, nas almas, de 1848 a 1870, pouco mais ou menos, e é neste período que a França cria para a civilização a ideia de democracia republicana. Não a cria, é claro, tão criadoramente como a Inglaterra de Cromwell, que a origina no mundo moderno; torna-a porém mais intensa e nítida, desenvolve-a — o que é também, ainda que secundariamente, uma criação. Finalmente, no terceiro período, o de 1870 para cá, a França nada cria para a civilização, nem mesmo a sua própria grandeza cria, visto que decai em valor europeu: vai vivendo, como a Inglaterra no segundo período, e realizando, apática e despiciendamente, o princípio de democracia republicana que em anterior período criara.
Posto isto, analisemos. Em primeiro lugar, é evidente a analogia, quanto a valor civilizacional, e, portanto, a vitalidade nacional, entre o primeiro período francês e o terceiro inglês, entre o segundo período francês e o primeiro inglês, e entre o terceiro período francês e o segundo da Inglaterra. Tão perfeita é a analogia social e civilizacional como a analogia literária. A literatura inglesa atinge o seu auge no primeiro, a francesa no segundo período. São relativamente ricas, a inglesa no terceiro período, a francesa no primeiro. E a inglesa no seu período segundo e a francesa no terceiro seu estão no mesmo nível de abatimento literário perante os outros períodos. — Vemos, pois, que o valor dos criadores literários corresponde ao valor criador das épocas a que correspondem; de modo que a literatura não só traduz as ideias da sua época mas — e é isto que importa que fixemos — o valor da literatura, perante a história literária, corresponde ao valor da época, perante a história da civilização.
Avançando na análise, porém, revela-se-nos que a posição cronológica das literaturas se dá, relativamente aos correspondentes movimentos sociais, de modo diverso nos três períodos. Assim, no primeiro período, o criador, da Inglaterra, o movimento literário que culmina em Shakespeare (entre 1590 e 1610) precede o movimento político, que só começa ao decair ele. E, em França, o movimento romântico vai decaindo à medida que se vai realizando nos espíritos o correspondente, e socialmente exuberante, movimento político. — No segundo período inglês e terceiro francês, análogos como já vimos, a corrente literária vem depois da corrente política que lhe corresponde; como em França se vê pelo aparecimento dos movimentos simbolista, realista e outros, claramente, nos anos que sucedem àqueles em que se consolidou a república; e em Inglaterra pelo facto de Pope, em quem a corrente literária culmina (Dryden, talvez maior, é um poeta de transição, pertencente em parte ainda ao período anterior), ser da geração seguinte à dos consolidadores da nova fórmula, característica da época, a de monarquia constitucional. — No terceiro período inglês e primeiro francês temos a coincidência no tempo entre a corrente e culminâncias literárias e o movimento e culminâncias políticos. É sob Luís XIV que a vida literária é de mais valor, e o movimento reformista inglês (de 1770 a 1832), que envolve em si as causas da hegemonia inglesa moderna e inclui as guerras em que ela se fixou, coincide com o romantismo britânico.
Examinemos agora quais os característicos interiores destas correntes literárias. As correntes literárias do segundo período inglês e do terceiro francês — aqueles períodos em que essas nações nada criaram, nem para os outros nem para si — oferecem como mais importante facto espiritual a desnacionalização da literatura; visto que a literatura inglesa do século XVIII é vazada em moldes franceses e a literatura francesa de 1880 para cá é tudo menos francesa de espírito. Assim, para dar o único exemplo que o espaço pode admitir, o simbolismo, essencialmente confuso, lírico e religioso é absolutamente contrário ao espírito lúcido, retórico e céptico do povo francês. — As correntes literárias do terceiro período inglês e primeiro francês — as dos períodos em que os países criaram a sua própria grandeza e hegemonia social, mas, de civilizacional, nada-mostram um equilíbrio entre o espírito nacional e a influencia estrangeira: assim, a influência alemã é patente mas não dominante no romantismo inglês e a influência da antiguidade tão importante como a do espírito nacional na literatura dos séculos XVII e XVIII em França. — Finalmente, nos períodos criadores — o primeiro inglês e segundo francês — temos na literatura o espírito nacional patente e dominante, absorvendo e absolutamente eliminando qualquer influência estrangeira que haja. Assim, nada mais francês do que Vítor Hugo com a sua retórica, a sua pseudo-profundeza, a sua lucidez epigramática, em pleno seio do lirismo, onde não está bem. E Spenser, Shakespeare e Milton — mas Spenser e Shakespeare mais do que Milton — são ingleses, inconfundivelmente.
IV
Ainda que rápida, já há nesta análise elementos para a apreciação ponderada da moderna poesia portuguesa.
O primeiro facto que se nota é que a actual corrente literária portuguesa é absolutamente nacional, e não só nacional com a inevitabilidade bruta de um canto popular, mas nacional com ideias especiais, sentimentos especiais, modos de expressão especiais e distintos de um movimento literário completamente português: e, de resto, se fosse menos, não seria um movimento literário, mas uma espécie de traje psíquico nacional, relegável da categoria de movimento de arte para a, para este caso sociológico nula, de um mero costume característico.
O segundo facto a notar é que o movimento poético português contém individualidades de vincado valor: não são Miltons nem Shakespeares, mas são gente que se extrema, além de pelo tom, que é da corrente, pelo valor mesmo, dentre os contemporâneos europeus, com excepção de um ou dois italianos, e esses não integrados em movimento ou corrente alguma que, distintiva ou nacional, tenha sombra de direito a ser comparada com a hodierna corrente poética lusitana.
O terceiro e último facto que se impõe é que este movimento poético dá-se coincidentemente com um período de pobre e deprimida vida social, de mesquinha política, de dificuldades e obstáculos de toda a espécie à mais quotidiana paz individual e social, e à mais rudimentar confiança ou segurança num, ou de um, futuro.
Vistos estes elementos sociológicos do problema, salta aos olhos a inevitável conclusão. É ela a mais extraordinária, a mais consoladora, a mais estonteante que se pode ousar esperar. É ela de ordem a coincidir absolutamente com aquelas intuições proféticas do poeta Teixeira de Pascoaes sobre a futura civilização lusitana, sobre o futuro glorioso que espera a Pátria Portuguesa. Tudo isso, que a fé e a intuição dos místicos deu a Teixeira de Pascoaes, vai o nosso raciocínio matematicamente confirmar.
É que os característicos que acabamos de descobrir no nosso actual movimento poético indicam, absolutamente, a sua analogia com as literaturas inglesa do primeiro, e francesa do segundo período, e, portanto, impõem que se conclua daí a fatal analogia com as épocas de que aquelas literaturas são representativas.
A analogia é absoluta. Temos, primeiro, a nota principal da completa nacionalidade e novidade do movimento. Temos, depois, o caso de se tratar de uma corrente literária contendo poetas de indiscutível valor. E note-se — para o caso de se argumentar que nenhum Shakespeare nem Vítor Hugo apareceu ainda na corrente literária portuguesa — que esta corrente vai ainda no princípio do seu princípio, gradualmente, porém, tornando-se mais firme, mais nítida, mais complexa. E isto leva a crer que deve estar para muito breve o inevitável aparecimento do poeta ou poetas supremos, desta corrente, e da nossa terra, porque fatalmente o Grande Poeta, que este movimento gerará, deslocará para segundo plano a figura, até agora primacial, de Camões. Quem sabe se não estará para um futuro muito próximo a ruidosa confirmação deste deduzidíssimo asserto?
Pode objectar-se, além de muita coisa desdenhável num artigo que tem de não ser longo, que o actual momento político não parece de ordem a gerar génios poéticos supremos, de reles e mesquinho que é. Mas é precisamente por isso que mais concluível se nos afigura o próximo aparecer de um supra-Camões na nossa terra. É precisamente este detalhe que marca a completa analogia da actual corrente literária portuguesa com aquelas, francesa e inglesa, onde o nosso raciocínio descobriu o acompanhamento literário das grandes épocas criadoras. Porque a corrente literária, como vimos, precede sempre a corrente social nas épocas sublimes de uma nação. Que admira que não vejamos sinal de renascença na vida política, se a analogia nos manda que o vejamos apenas uma, duas ou três gerações depois do auge da corrente literária?
Ousemos concluir isto, onde o raciocínio excede o sonho: que a actual corrente literária portuguesa é completa e absolutamennte o princípio de uma grande corrente literária, das que precedem as grandes épocas criadoras das grandes nações de quem a civilização é filha.
Que o mal e o pouco do presente nos não deprimam nem iludam: são eles que confirmam o nosso raciocínio. Tenhamos a coragem de ir para aquela louca alegria que vem das bandas para onde o raciocínio nos leva! Prepara-se em Portugal uma renascença extraordinária, um ressurgimento assombroso. O ponto de luz até onde essa renascença nos deve levar, não se pode dizer neste breve estudo; desacompanhada de um raciocínio confirmativo, essa previsão pareceria um lúcido sonho de louco.
Tenhamos fé. Tornemos essa crença, afinal, lógica, num futuro mais glorioso do que a imaginação o ousa conceber, a nossa alma e o nosso corpo, o quotidiano e o eterno de nós. Dia e noite, em pensamento e acção, em sonho e vida, esteja connosco, para que nenhuma das nossas almas falte à sua missão de hoje, de criar o supra-Portugal de amanhã.
1912

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