sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O marido (im)perfeito: o inferno é o Outro


Por http://www.amalgama.blog.br/05/2010/entrevista-felipe-pena/por Vanessa Souza (10/05/2010)
em Entrevistas, Literatura, Livros


a Vanessa Souza

Tenho vários motivos para ter devorado avidamente O marido perfeito mora ao lado, décimo livro do carioca Felipe Pena – jornalista, psicólogo e professor de literatura da Universidade Federal Fluminense. Diálogos instigantes e rápidos, personagens vivos e cheios de conflitos, cenários do Rio de Janeiro bem descritos, conceitos de psicanálise e as dores e delícias da convivência. Tudo isso com humor refinado.

O livro tem recebido ótimas críticas. Nesse caso, preciso discordar da máxima rodrigueana de que toda unanimidade é burra. O marido perfeito… é difícil de ser deixado de lado, pois cada capítulo leva ao seguinte. O enredo traz a história de um casal em crise. A mulher decide fazer terapia de casal. O homem a acompanha, a contragosto. Como não podem pagar pela terapia, procuram uma clínica universitária. Lá, são atendidos por cinco alunos de psicologia, que divergem nas opiniões sobre os problemas do casal. Até que um dos estudantes é sequestrado. Todos estão sob suspeita.

*

Amálgama: Como surgiu a ideia do livro?
Felipe Pena: Houve duas motivações, uma é que eu fiz doutorado em literatura, e sempre me incomodou o fato de que boa parte dos escritores brasileiros escreverem não para serem lidos, mas para serem estudados. Isso é muito irritante, eles esperam que as obras-primas deles recebam teses de mestrado e doutorado, mas não estão nem aí para o leitor. Acho que o leitor é muito pouco valorizado no Brasil, uma coisa que lá fora não acontece. Eu queria escrever para ser lido, o que parece ser uma redundância, mas não é. Quis montar uma estratégia, e precisava de algumas coisas que se encaixassem nela.

Primeiro, eu estudei a tragédia da literatura brasileira e o que não fazer: autorreferenciais, confessionais, nada disso. Jogos de linguagem, experimentalismo, tudo isso está sendo feito. Não há nada menos experimental do que o experimentalismo. É inacreditável porque é tudo igual, todo mundo experimenta, então virou regra. Eu quis fazer um enredo clássico, universal: DR, nada mais universal do que discutir a relação. Depois era preciso bolar uma estratégia narrativa. Você viu no livro que os capítulos são curtos, folhetinescos? Eu estudei muito Balzac. Ele escrevia para jornal, cada capítulo para o jornal do dia. O Balzac tinha que fazer o cara comprar o jornal do dia. E como eu já tinha o estudo da psicanálise muito aprofundado… Eu comecei a ler Freud com 18 anos, devo ter lido a obra completa dele pelo menos umas três vezes, mas nunca tinha feito psicologia. Eu sou jornalista, então pensei em fazer um trabalho de campo, que incluía a clínica universitária, como aluno. Sou professor, e não era aluno de graduação há muitos anos. Aí voltei, e o livro se formou durante os três anos e meio que eu fiz a graduação em psicologia, onde fui construindo o enredo, vendo as tragédias. Assim a ideia foi se formando, sendo escrita e reescrita. Muitas vezes. Aliás, eis o primordial para um livro: ter que escrever e reescrever. Tem dez livros ali. Das 300 páginas que formam o livro, 2.700 foram jogadas fora. É muita reescritura.

Já na época do doutorado eu queria fazer um romance, e escrevi O analfabeto que passou no vestibular, mas que tinha muito mais a função de falar sobre o ensino superior brasileiro, havia um pano de fundo. No Marido perfeito… não, eu tinha essa estratégia.

Na página nove há uma pequena explicação sobre quem são os 14 personagens principais. Como foi esse processo de criação deles? Você pensou neles individualmente?
Às vezes sim e às vezes não. A gente planeja algumas coisas e nada dá certo. Eles têm vida própria, tomam conta de mim. Quando eu tinha uns 18 ou 19 anos vi uma entrevista do Jorge Amado, falando isso: os personagens tomam conta, têm vida própria. Eu pensei: isso é papo de escritor. Não é. Hoje que eu escrevo ficção, vejo que é verdade. Os personagens têm vida própria. Um você planeja que vai ficar até o final do livro, e ele morre no capítulo dois. E outra que ia morrer no capítulo dois, acaba vivendo. E aí esses perfis todos vão caindo por terra, vão mudando. Eu escrevo todo dia, com disciplina, das cinco às oito da manhã.

Há algum personagem por que você tenha mais simpatia, ou ao contrário, que você goste menos?
Cada leitor vai ter sua preferência. Eu não tenho nenhuma. Eu não faço nenhum julgamento moral, todos os personagens são bons e ruins. Não tem nenhum mocinho ou bandido, são anti-heróis, cada um acha alguém perfeito à sua maneira. Pode ser a santa/santo, pode ser a mulher que gosta de ir na casa de swing, pode ser… Acaso eu fizesse julgamento moral, eu estaria me traindo. Eles tomam conta de mim e eu gosto e desgosto, da mesma maneira.

Na orelha do livro, o João Assafim, professor da UFRJ, cita Nelson Rodrigues: “Eles não sabem como é difícil escrever fácil”. Como foi para você sair da linguagem acadêmica e produzir um romance de leitura fluída?
Algumas pessoas estão me comparando ao Nelson Rodrigues, e é claro que eu vou achar isso um absurdo, não tenho pretensão nenhuma em ser rodrigueano. Mas eu não vou ficar nem um pouco chateado com isso (risos). Eu venho ensaiando isso há um tempo. Eu escrevi um livro que se chama Teoria do Jornalismo, que é adotado no primeiro período da faculdade de jornalismo. Ele é escrito em primeira pessoa. Ali eu comecei uma revolução na academia. Antes, todos os meus cinco livros publicados eram acadêmicos, minha dissertação de mestrado, tese de doutorado, aquela coisa que você sabe como é: quadrada, hermética, chata… Uma hora eu cansei: não agüento mais, quero me comunicar. Primeiro com meus alunos, aí fiz um livro acadêmico em primeira pessoa, contando conceitos e teorias do jornalismo, com experiências minhas. E tomei porrada de tudo quanto é lugar. Hoje, ele é meu livro mais vendido, adotado em 80 faculdades de jornalismo do Brasil inteiro.

Depois disso eu escrevi um livro chamado Jornalismo Literário. Também assim, tudo em primeira pessoa, brincando, contando histórias, falando do céu e do inferno, essas coisas. Ali eu esgotei e falei: está na hora de ir para a ficção, que era aquele projeto antigo, que eu tinha desde o doutorado. Eu tinha a ideia do Analfabeto na cabeça, uma historia real, que escrevi e teve uma repercussão grande e fui conversar com a Record. Eu já estava com O marido perfeito… sendo escrito. Eu apresentei para a Luciana Villas-Boas, diretora editorial da Record, só a ideia. E ela falou: onde é que a gente assina? Sem conhecer o livro, impressionante. Quando pronto, ela leu e se emocionou. Depois disso eu fiquei até assustado, todos dizendo que o livro era bom. E você fica inseguro… Será que ele é bom? Aí eles dizem que é, você acredita e vai em frente. Agora eu não saio mais da ficção.


-- A obra --
Parte do romance se passa em uma favela, ou comunidade. De onde você tirou esses termos usados pelos personagens? Confesso que foi a parte do livro que me incomodou.
Essa parte incomoda muita gente. As pessoas desconhecem que muitos universitários de classe alta falam naquela linguagem, principalmente no Rio de Janeiro. E toda essa convivência é real, e eu vi isso no trabalho de campo. A linguagem é uma transposição, é a única coisa em que o trabalho de campo é quase literal. Eu ouvia essas meninas falando assim, eu sei que elas falam nesses termos, eu só transcrevi. Aquilo é real e vai te causar estranhamento. Eu fui repórter por muitos anos, conheço bem a linguagem, subi muito morro. No trabalho de campo eu fui a baile funk, conheço a favela. Esta é a parte mais real do livro, a coisa menos ficcional, e é o que mais choca.

Teu livro me pareceu leve, eu li muito rápido. Mas ele também é permeado de conceitos de psicanálise e psicologia, inclusive aprendi um pouco de psicologia com a leitura. Quero saber qual foi tua intenção em incluir estes conceitos.
Este é o maior elogio que eu poderia receber. Não sabes como esse comentário me deixa feliz, eu não quero ganhar prêmio nenhum, só quero esses comentários dos leitores: li com prazer, li rápido, não consegui largar o livro. É isto que eu almejo. Este era o desafio, fazer alguma coisa que fosse leve, mas que não fosse superficial. São coisas diferentes, leveza é uma coisa, superficialidade é outra. O livro pode ser profundo, denso, mas ser leve. Ele não precisa ser pesado para ser denso. Ele tem uma densidade, traz conceituações, traz uma complexidade. Mas ao mesmo tempo traz prazer. Se eu consegui isso, eu atingi meu objetivo. Não era simplesmente passar o enredo. Era isso também, mas a partir dali aprender alguma coisa.

Quais seus escritores favoritos?
Isso é muito difícil. Vou tentar, mas posso cometer muitas injustiças. E não é nessa ordem: Balzac, Antônio Fonseca, Antônio Torres, Dionísio da Silva, Gabriel García Márquez, Hemingway, gosto muito de uma primeira fase do Saramago, e não gosto de outra. Minha principal influência é um sujeito chamado Walter Maia, que foi meu professor de redação na oitava série. Foi ele que disse que eu ia ser escritor, quando eu tinha 14 anos. Corrigindo uma redação ele falou: você será escritor. E até hoje eu sigo um único mandamento que ele tinha para uma boa redação: comece bem e termine bem, porque o meio vai chegar. Ele foi no lançamento do meu livro aqui no Rio, com metade da face paralisada – ele teve uma isquemia – e eu chorei como uma criança quando o vi. Nada me marcou mais no lançamento do que a presença do Walter Maia.

Quais livros estão na sua cabeceira hoje?
Leio vários ao mesmo tempo. Eu releio Freud e Lacan o tempo inteiro. Estou lendo um livro da Inês Pedrosa, chamado A eternidade e o desejo. Também está na minha cabeceira As palavras de Freud, do Paulo César de Souza. Comprei a nova tradução do Freud, aqueles três volumes que foram traduzidos do alemão. Estou lendo Lourenço Mutarelli, muito mais para entender o que ele diz, do que por um prazer estético. Estou lendo também um livro de crônicas do Carpinejar. Há um livro na minha cabeceira que ainda não li, mas vou ler, é O filho da mãe, do Bernardo Carvalho.

::: O marido perfeito mora ao lado ::: Felipe Pena ::: Record, 2010, 304 páginas :::
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